O amor é uma falácia

"Eu era frio e lógico, calculista, perspicaz e astuto – era tudo isso – e tinha um cérebro poderoso, preciso e penetrante. Muito diferente de Pettey Bellows: bom fulano, mas do tipo emocional e dado a manias.
Certa tarde, encontrei-o deitado com expressão de sofrimento. O seu problema era mental: queria um blusão de cabedal preto. E porquê? Porque toda a gente os estava a usar e queria andar na moda. Seria capaz de trocar tudo pelo blusão de cabedal preto, até a sua namorada, Polly Spy.
Ora, eu desejava Polly Spy. Entenda-se: embora a moça despertasse emoções, o meu desejo não era emotivo. Eu estudava Direito e em breve iria iniciar-me na profissão. Sabia bem a importância de uma esposa na carreira de um advogado de sucesso, pois estes eram quase sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e inteligentes. Polly preenchia quase todos estes requisitos: faltava-lhe apenas um pouco de raciocínio.
Decidi oferecer um blusão a Pettey; ele, depois de alguma luta interior, abdicou de Polly em favor do blusão. Afinal, disse ele, não estava apaixonado pela Polly. Fizemos um acordo, o blusão pela Polly.
Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte. A sua ignorância era aterradora. Não bastava instruí-la. Era preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. Decidi tentar, ensinando-lhe lógica.
Num segundo encontro, disse a Polly:
- Esta noite vamos conversar sobre lógica.
- Que interessante! – disse ela.
- A lógica é a ciência do pensamento. Se quisermos pensar correctamente, é preciso saber identificar as falácias mais comuns. Vamos examinar a falácia da generalização apressada. Ouve com atenção: tu não sabes falar francês, eu não sei falar francês, Pettey não sabe falar francês. Posso concluir que ninguém na universidade sabe falar francês?
– Ninguém? - espantou-se Polly.
- É uma falácia, Polly. A generalização é feita apressadamente. Não há exemplos suficientes para justificar a conclusão.
Na noite seguinte, disse a Polly:
- A primeira falácia desta noite chama-se ad misericordiam. Ouve com atenção: um homem vai pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais as suas qualificações, o homem responde que tem uma mulher e dois filhos em casa, que a mulher está doente, as crianças não tem o que comer, nem o que vestir e calçar, a casa não tem camas, não há lenha na arrecadação e aproxima-se o Inverno.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de Polly.
- Isso é horrível, horrível! – soluçou.
- É horrível – concordei – mas não é um argumento. O homem, em vez de apresentar as suas qualificações, tentou despertar a compaixão do patrão. Cometeu a falácia de ad misericordiam. Compreendes? Agora discutiremos a falsa analogia. Eis um exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar os livros durante os exames. Afinal, os cirurgiões levam as radiografias para as operações, os advogados consultam códigos durante um julgamento, os construtores usam plantas que os orientam na construção de uma casa. Porque não deixar que os alunos consultem livros durante uma prova?
- Aí está uma ideia muito interessante! – disse ela.
- Polly – respondi impaciente – o argumento é falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os construtores não estão a fazer um teste para ver o que aprenderam, mas os estudantes sim. As situações são completamente diferentes e não se pode fazer analogia entre elas. A próxima falácia é chamada de ad hominem.
- Que giro! – deliciou-se Polly.
- Dois homens vão começar um debate. Um levanta-se e diz: “O meu oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível acreditar numa só apalavra do que ele disser”. Agora, Polly, pensa bem, o que está errado?
Vi-a enrugar a testa, concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência – o primeiro – surgiu-lhe nos olhos.
- Não é justo! – disse ela indignada – Não é justo. O primeiro envenenou o ambiente antes que o outro pudesse falar. Atou as mãos do adversário antes da luta começar…
- Polly, estou orgulhoso de ti.
- Ora – murmurou ela, ruborizando de prazer.
Decidi comunicar-lhe os meus sentimentos. Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera a pena. Eu transformara Polly. Fizera dela uma mulher digna de mim. Está apta a ser minha esposa, uma anfitriã perfeita para as minhas muitas mansões. Uma mãe adequada para os meus filhos privilegiados.
- Polly, hoje não falaremos de falácias.
Ela ficou desapontada.
- Minha querida, hoje é a sexta noite que estamos juntos. Demo-nos muito bem. Não há dúvidas de que formamos um bom par.
- Generalização apressada – exclamou, alegremente.
- Perdão? – disse eu.
- Generalização apressada – confirmou – Como podes dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada, contente. Ela aprendera bem as lições.
- Minha querida – disse eu – cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para saber se ele é bom ou não.
- Falsa Analogia – disse Polly prontamente – eu não sou um bolo, sou uma pessoa.
Dei outra risada, já não tão contente. Talvez ela tivesse aprendido a lição bem demais. Resolvi mudar de táctica, pois o indicado era uma declaração de amor simples, directa e convincente. Fiz uma pausa, enquanto o meu potente cérebro seleccionava as palavras adequadas. Depois reiniciei.
- Polly, amo-te. És tudo no mundo para mim, a lua, as estrelas e as constelações no firmamento. For favor, minha querida, aceita ser minha namorada senão a minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios. Pronto, pensei; está encerrado o assunto.
- Ad misericordiam – disse Polly.
Cerrei os dentes, lutando contra o pânico que me invadia.
- Bem, Polly – disse, forçando um sorriso – não há dúvida que aprendeste bem as falácias.
- Aprendi mesmo – respondeu ela.
- Então, responde agora: vais ou não namorar comigo?
- Não – respondeu ela.
- Porque não?
- Porque hoje à tarde prometi a Pettey que continuaria a ser namorada dele.
Quase caí para trás, fulminado por aquela infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio!
- Aquele rato! – gritei – Tu não podes namorar com ele, Polly. É um mentiroso, um traidor, um rato.
- Ad hominem – disse Polly – E pára de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.
- Muito bem – disse, tentando manter a calma – Já que és uma especialista em lógica, vamos olhar as coisas logicamente. Como pode preferir Pettey Bellows? Olha para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um homem com futuro assegurado. E vê Pettey: um maluco, um estouvado, um fulano que nunca saberá se vai comer no dia seguinte. Podes dar-me uma única razão lógica para namorar Pettey Bellows?
- Posso sim – declarou Polly – Ele tem um blusão de cabedal preto."

M. Sulman

4 comentários:

  1. eu não acredito! dei este texto este ano em filosofia! tas no 11º? e tens o "pensar azul"?
    o texto é muitooo inteligente

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  2. Eish este texto. O belo do livro de Filosofia! também é o meu manual este ano.

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